Cartas

Carta 37

maio | 2022

1. As relações entre a Geopolítica e o Sistema Monetário Internacional

O debate sobre a necessidade de mudança das bases do sistema monetário internacional não é novo. Pelo contrário, o tema é recorrente e acompanha os principais eventos da economia global. Em agosto de 2019, na famosa conferência dos Bancos Centrais em Jackson Hole, o então presidente do Banco da Inglaterra Mark Carney causou rebuliço ao discursar sobre os desafios que a situação naquele momento trazia para a condução da política monetária, enfatizando que a modernização do sistema a longo prazo era necessária para que refletisse a economia global multipolar.

Recentemente, o debate voltou à baila por conta das sanções financeiras aplicadas à Rússia após a invasão da Ucrânia, que desencadeou a maior guerra em solo europeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Isto se junta ao contexto de acirramento das tensões entre EUA e China caracterizado pela guerra comercial e tecnológica, além da pandemia da Covid-19 e consequente desorganização nas cadeias produtivas globais. Tudo isso provocou reflexões profundas das autoridades governamentais sobre suas vulnerabilidades e aspectos relacionados à segurança nacional e limites da globalização. Podemos argumentar que atualmente o pêndulo está indo na direção da desglobalização através de elementos como maior protecionismo, imposição de tarifas comerciais, necessidade de diversificação e redundâncias das cadeias de suprimentos, reshoring ou friend-shoring , e um maior acúmulo de estoques em uma transição do modelo “just in time” para o modelo “just in case”.

As sanções econômicas e financeiras à Rússia foram lideradas pelos EUA e Europa com o objetivo de infringir danos a economia russa como fonte de pressão adicional à ajuda militar para a Ucrânia. Não é a primeira vez que sanções econômicas são usadas: em seu livro recentemente publicado, o historiador Nicholas Mulder discorre sobre o surgimento e desenvolvimento destes mecanismos de bloqueio econômico e financeiro. Segundo o autor, o uso de “armas econômicas” foi instituído no artigo 16 do documento que estabeleceu a Liga da Nações após a Primeira Guerra Mundial. Desta forma, a ideia era utilizá-las não apenas em momentos de guerra, mas também em momentos de paz, justamente para ajudar a evitar enfrentamentos militares.

“A emergência das sanções econômicas sinalizou o surgimento de uma diferente abordagem liberal para o conflito mundial, que está bem vivo hoje em dia. Sanções mudaram os limites entre guerra e paz, produziram novas formas de mapear e manipular o tecido da economia mundial, mudaram a maneira como o liberalismo pensa coerção e alterou o curso das leis internacionais.” – Nicholas Mulder, “The Economic Weapon: The Rise of Sanctions as a Tool of Modern War”

No caso da Rússia, a grande novidade foi as sanções financeiras, especificamente o bloqueio dos bancos russos ao sistema de comunicações para transferências de recursos internacionais – o SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) e, principalmente, o congelamento de parte relevante das reservas internacionais do Banco Central da Rússia, que estão denominadas nas moedas dos países que lideraram a aplicação das sanções: o dólar americano e o euro.

Os EUA estão sendo acusados de usar o dólar americano (USD) como arma de guerra econômica. Quais impactos isso pode trazer para o Sistema Monetário Internacional e, sobretudo, no dólar americano enquanto moeda reserva central deste sistema? Essas são as principais questões que procuramos elaborar neste texto – primeiro definindo o que nos referimos quando falamos de Sistema Monetário Internacional e, depois, analisando a perspectiva histórica para compreender como chegamos à situação atual.

Sistema Monetário Internacional
Eventos geopolíticos sempre foram muito importantes para moldar as instituições que regem as relações entres os diferentes países. Dentre estes eventos, guerras militares são de suma importância. Uma das instituições fundamentais das relações econômicas entre os países é o chamado Sistema Monetário Internacional (SMI).

O próprio sistema de Bretton Woods, do qual falaremos mais adiante, foi forjado no final da Segunda Guerra Mundial em um momento de declínio da Inglaterra como principal potência econômica e militar e, ao mesmo tempo, a ascensão dos EUA ao papel de principal liderança mundial.

O SMI pode ser entendido como o conjunto de regras que regem as trocas financeiras entre os países, incluindo arranjos monetários e cambiais. Os economistas Emmanuel Farhi e Matteo Maggiori definem o SMI a partir de uma coleção de três atributos fundamentais: (i) a oferta e a demanda de ativos de reserva, (ii) regimes cambiais e (iii) instituições monetárias internacionais.

Os ativos de reserva são aceitos internacionalmente e mantêm seu valor ao longo do tempo, sobretudo em momentos de incerteza. Quais são os fatores que influenciam a escolha de uma moeda reserva internacional? Obviamente os principais critérios são aqueles que se referem a qualquer ativo que funcione como moeda, isto é, unidade de conta, meio de troca e reserva de valor. No caso do meio de troca, a confiança na aceitação do ativo é fundamental. A provisão de ativos de reserva internacional não deixa de ser a provisão de o que os economistas chamam de um bem público. A tabela abaixo (adaptada de Gourinchas 2019 ) resume o papel do que se configura uma moeda internacional e sua relação com agentes públicos e privados.

 

Com relação aos regimes monetários, a grande questão é se as taxas de câmbio entre as diferentes moedas nacionais são fixas ou flutuam livremente e como funcionam os mecanismos de ajustes dessas taxas. Por fim, as instituições monetárias internacionais são aquelas que desempenham o papel de coordenação de políticas econômicas entre os países, o que é absolutamente fundamental para o bom funcionamento de todo o sistema.

Ao longo de sua história, o SMI se desenvolveu a partir de tensões entre equilíbrio externo - evitar problemas no balanço de pagamentos – e o equilíbrio interno – que podemos definir como a manutenção de crescimento econômico adequado para produzir baixo desemprego e inflação sob controle. Estas tensões provocaram mudanças nesses três elementos principais: ativos reserva, regime cambial e instituições reguladoras ou coordenadoras.

A Evolução do Sistema Monetário Internacional
O primeiro SMI bem documentado pela literatura econômica surgiu após a consolidação dos Estados-Nações no século XIX e foi o padrão-ouro. O padrão-ouro tem origem no fato do ouro, por suas características intrínsecas, ter sido utilizado como moeda durante muitos séculos. O ouro é o ativo de reserva nesse sistema que vigorou entre 1870 e o início da Primeira Guerra Mundial, período no qual floresceram as ideias do liberalismo econômico de livre circulação de mercadorias, capitais e pessoas.

No século XIX, a Inglaterra era a potência dominante nos fluxos comerciais e financeiros. Nesse mecanismo, os países fixam uma taxa de conversão entre a moeda nacional e uma determinada quantidade de ouro, desta forma se comprometendo a trocar moeda por ouro na mesma paridade sempre que necessário. Assim, as taxas de câmbio entre os países são fixas e as moedas fiduciárias são totalmente lastreadas em ouro. O ajuste de desequilíbrios, na teoria, ocorre através do mecanismo de preço-fluxo em que o ouro se move livremente entre os países. Na prática, o padrão ouro acaba engessando demais a política econômica interna dos países, já que perdem a capacidade de fazer política monetária que se submete à manutenção das taxas de conversibilidade em ouro. Eventualmente a necessidade de obter o equilíbrio interno ganha prioridade vis-à-vis a manutenção do equilíbrio externo.

O padrão-ouro foi interrompido durante a Primeira Guerra Mundial já que havia a necessidade de gastos militares que foram financiados com expansão monetária. Após o conflito, a alta da inflação gerou um movimento de retorno ao padrão-ouro. Mas a Grande Depressão da década de 30 foi o golpe fatal: período de desordem monetária e queda do comércio global com aumento do protecionismo, controles de capitais e desvalorizações cambiais competitivas. Ben Bernanke, ex-presidente do FED e grande estudioso da Grande Depressão, observou que aqueles países que abandonaram o padrão-ouro se recuperaram desta crise mais rapidamente do que aqueles que permaneceram no sistema. A Inglaterra abandonou o regime em 1931 e promoveu uma desvalorização da libra. Os EUA saíram do padrão-ouro em 1933.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, na conferência de Bretton Woods, foi desenhado o sistema que vigoraria para os anos subsequentes sob a liderança de John Maynard Keynes representado a Inglaterra e Harry Dexter White representando os EUA. As propostas de Keynes para o novo sistema incluíam a emissão de uma moeda de reserva internacional, o Bancor, que poderia ser emitido por uma instituição monetária global. Entretanto, a proposta de White foi a que prevaleceu a partir da ideia de criar um fundo de estabilização que emprestaria moedas nacionais depositadas pelos governos. O sistema elaborado pelo acordo de Bretton Woods colocou o USD no centro do sistema financeiro ao estabelecer taxas de câmbio fixas dos países com relação ao dólar americano. O ouro continuava como um ativo reserva importante, mas desta vez eram os EUA que ficaram responsáveis por manter a paridade do dólar com o ouro. Outras instituições resultantes do acordo de Bretton Woods foram o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Desta forma, o dólar americano tornou-se uma moeda universal como unidade de troca, unidade de conta e reserva de valor. As desvalorizações cambiais seriam permitidas em casos de desequilíbrios extremos nos balanços de pagamentos, desde que houvesse aprovação internacional. A ideia era encontrar um meio termo entre a necessidade de ajustes para países em desequilíbrio nas contas externas sem o risco de desencadear desvalorizações competitivas, isto é, guerra cambial.

Mas o sistema de Bretton Woods trazia uma contradição inerente que foi bem exposta pelo economista Robert Triffin na década de 1960 no que ficou conhecido como o Paradoxo de Triffin. A centralidade do USD exigia aumento da liquidez internacional que substanciasse o crescimento econômico global e os fluxos de comércio. Isto dependia das expansões do déficit externo dos EUA. Mas à medida que esse déficit se expandia e o os dólares se acumulassem nos bancos centrais das demais nações, haveria um aumento da desconfiança de que os EUA não teriam como honrar a paridade com o ouro. Ou seja, o sistema seria vulnerável a corridas contra o dólar americano.

De fato, o sistema funcionou razoavelmente enquanto os desequilíbrios eram relativamente pequenos, mas o problema de confiança identificado por Triffin começou a se desenhar no final da década de sessenta como consequência do aumento do déficit fiscal americano devido ao aumento dos gastos públicos tanto para financiar a guerra do Vietnã quanto os programas sociais da Great Society. Esta forte expansão fiscal resultou no aumento da inflação, intensificando a pressão de ataques especulativos contra o USD. Para contornar este problema estabeleceu-se um mercado paralelo de ouro cuja paridade seria diferente da paridade oficial e, é claro, isto só aumentou a desconfiança. Em agosto de 1971, o presidente Richard Nixon anunciou que os EUA interromperiam a conversão de dólares em ouro e anunciou um aumento de 10% das tarifas de importação. No final deste mesmo ano houve tentativas de estabelecer paridades diferentes com o dólar americano mais desvalorizado nos acordos do Smithsonian Institute, mas estes não duraram muito tempo. Em 1973 as paridades foram completamente abandonadas. Desta forma, inaugurou-se um sistema sem lastro em ouro, 100% fiduciário e com maior flutuação das taxas de câmbio entre os países.

O atual momento do SMI
Mesmo com o fim de Bretton Woods, o poderio econômico e militar norte americano garantiu que o dólar americano continuasse como a principal moeda reserva internacional. Afinal, os EUA ainda era a maior economia do mundo e líder no comércio internacional, com o mais profundo e líquido mercado financeiro. Isto deu aos EUA o que Valery Giscard dÉstaing, Ministro das Finanças do presidente francês Charles de Gaulle, caracterizou como “privilégio exorbitante” – um termo que encampa todos os benefícios que a economia americana possui por ter a sua moeda fiduciária no centro do SMI, como comprar bens e serviços estrangeiros a partir de dinheiro impresso pelo seu Banco Central e poder emitir dívida a custo mais baixo, além de poder sustentar déficits comerciais de forma persistente. Paradoxalmente, após o fim da paridade com o ouro, o uso do USD como moeda internacional aumentou.

Em 2003, Dooley, Garber e Folkerts-Landau chamaram atenção para a emergência de um novo sistema similar ao Bretton Woods, numa tese que ficou conhecida como “Bretton Woods 2.0”. A estratégia de inserção internacional e desenvolvimento de países emergentes, sobretudo asiáticos como a China, era baseada em exportações e tinham taxa de câmbio administrada em relação ao dólar americano. Assim, acumulavam reservas internacionais que eram recicladas de volta nos EUA . As crises de balanço de pagamentos de países emergentes na década de noventa impulsionaram o maior acúmulo de ativos de reservas internacionais como um seguro contra crises futuras. Inclusive, este fator está no cerne do que Ben Bernanke chamou de “global savings-glut” para justificar o fato de que as taxas de juros mais longas do tesouro americano permaneciam relativamente baixas mesmo em momentos de aperto da política monetária. Os juros mais baixos contribuíram para a bolha de crédito imobiliária cujo estouro desencadeou a maior crise financeira global desde a Grande Depressão.

A crise financeira de 2008 mostrou que apesar dos EUA estarem no epicentro, o USD se fortaleceu durante a crise assim como os títulos do tesouro americano se valorizaram, consolidando a visão de que estes ativos são fundamentalmente “safe havens” e que o Federal Reserve de fato se posicionou como emprestador de última instância, provendo o mundo com dólares necessários para evitar um credit crunch, através de seus programas de afrouxamento quantitativo e swaps cambiais com os principais bancos centrais globais.

Sanções Financeiras e o papel do dólar americano
Voltamos à pergunta inicial: O uso do USD como arma econômica ameaça seu status de moeda internacional dominante?

Primeiramente ponderamos que a aplicação das sanções financeiras tão fortes como o congelamento de ativos do Banco Central russo pode ser considerada resposta a uma situação realmente extrema e, assim sendo, excepcional. Não parece razoável que sanções financeiras sejam impostas por motivo trivial daqui para a frente.

À luz da perspectiva histórica, conclui-se que a dominância do dólar americano no centro do SMI está bastante enraizada. Existe uma enorme inércia dado todos os benefícios dos efeitos de rede e das sinergias que o atual sistema baseado no dólar produz. Nas bases desta dominância está um enorme mercado financeiro profundo e líquido, além de toda estrutura institucional norte-americana de excelente governança e a imparcialidade na aplicação das leis – rule of law.

Outra questão fundamental elaborada por Michael Pettis, professor da Peking University , é que o debate sobre a dominância do USD transcende os aspectos financeiros da livre movimentação de capitais. Mudar a moeda dominante significaria também reconfigurar os padrões do comércio global o que por sua vez requer ajustes econômicos difíceis. O acúmulo de reservas em dólares reflete o excesso de poupança das maiores economias globais como China, Alemanha e Japão além do excesso de demanda dos EUA. Num certo sentido, o argumento se assemelha ao supracitado “Bretton Woods 2.0”.

Mas tudo isso não impede que algumas mudanças ocorram, ainda que de maneira bem lenta. Por exemplo, a última pesquisa do FMI sobre a composição das reservas internacionais dos bancos centrais mostrou que a moeda americana tem uma participação de quase 60% do total. Esta participação era de pouco mais de 70% em 1999. Em recente working paper do FMI, Arslanalp, Eichengreen e Simpson-Bell argumentam que já estamos diante de uma erosão discreta da dominância do USD no que concerne a composição dessas reservas, conforme ilustra o gráfico ao lado reproduzido do mesmo artigo:

Isto reflete um aumento da diversificação ativa para o que os autores chamaram de moedas reservas não tradicionais que tiveram um ganho de participação para 10% desde a virada do século. Neste grupo as principais moedas são o dólar australiano (AUD), o dólar canadense (CAD), o renminbi da China (CNY) e o franco suíço (CHF).

De qualquer forma, devemos observar a busca por alternativas nos países não alinhados às potências liberais ocidentais. Todavia, simplesmente não existe no curto-prazo alternativa ao dólar americano. Vale frisar que outras moedas de países desenvolvidos que ganharam espaço nas reservas internacionais dos Bancos Centrais nos últimos anos como CAD e AUD também fazem parte da aliança que está aplicando sanções à Rússia. Até mesmo a longa tradição de neutralidade da Suíça foi abandonada.

Com relação ao Euro, 2º colocado no “ranking” das reservas internacionais, não podemos esquecer que é resultado de uma união monetária, mas de união fiscal ainda incompleta. Não dá para descartar que crises em países membros eventualmente ameacem a sobrevivência da moeda única como foi o caso da crise na Grécia. Este tipo de questionamento existencial limita o uso do Euro como moeda reserva global.

Quanto ao CNY, muito se tem escrito sobre seu potencial de moeda reserva na esteira da ascensão da China como grande potência econômica. Mas apesar dos esforços recentes para internacionalizar o uso de sua moeda, incluindo a criação do sistema CIPS (China Cross-Border Interbank Payment System) alternativo ao SWIFT, e o avanço de sua versão digital (e-CNY), a moeda chinesa parece ainda bem longe de ameaçar a dominância do USD. Para isso a China deveria tornar o CNY livremente conversível e eliminar qualquer tipo de controle de capital. Existe muito ceticismo sobre se as autoridades chinesas estariam dispostas a fazer isso na escala e grau necessários dado seu viés por estabilidade interna, principalmente a financeira. Ademais, o sistema financeiro chinês ainda é relativamente pouco desenvolvido comparado ao tamanho da economia. Outro questionamento é se a China resistiria a usar o CNY também como forma de pressão econômica caso fosse contrariada na esfera geopolítica. De qualquer forma a moeda chinesa deve continuar ganhando importância internacional. Um forte sinal nesse sentido é a notícia de que a Arábia Saudita estaria considerando vender petróleo para a China em troca de CNY.

Uma alternativa que deve ganhar participação como reservas para os países não alinhados aos EUA e Europa é o ouro. Afinal, as reservas são também um “seguro” para ser usado em momentos adversos, e a possibilidade de não poder usá-las na ocorrência de um “sinistro” incentiva a diversificação em ativos reais como ouro. No caso da China, pouco mais de 3% das suas reservas internacionais estão aplicadas no metal precioso. É razoável pensar que ao longo do tempo a participação do metal precioso deve aumentar em detrimento dos títulos do tesouro americano.

O bloqueio de ativos de empresários russos ligados à Vladmir Putin também reacendeu o debate sobre o uso de criptomoedas como alternativa para esse tipo de risco. No setor privado, é provável que o uso das criptomoedas seja impulsionado neste ambiente, mas, fundamentalmente, é o avanço da tecnologia que pode interferir não só na dominância do dólar americano, mas produzir mudanças estruturais no sistema como um todo. Não é absurdo imaginar que no futuro possamos ter uma moeda global única para transações internacionais que seja, por exemplo, baseada em tecnologia da Blockchain (Distributed Ledger Technologies).

Resumindo, provavelmente não é o fim da dominância do dólar americano, mas o imbróglio das sanções – em conjunção com o panorama de maior conflito político-ideológico e alguma reversão do processo de globalização – é um vetor adicional contribuindo na direção de um sistema monetário internacional mais fragmentado e organizado em blocos com diferentes esferas de influência econômica e política.

2. Como a pandemia afetou o planejamento sucessório das famílias

Com o início da pandemia em 2020 um assunto que se tornou ainda mais comum no âmbito familiar foi o planejamento sucessório, em especial as que tiveram a perda de um ente querido, levantando diversos pontos sobre a sucessão dos seus familiares. Para referendar este fato podemos observar a arrecadação do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (“ITCMD”), que incide tanto na sucessão do indivíduo, como em planejamentos sucessórios que, comumente, utilizam o instrumento da doação. No estado de São Paulo a arrecadação com o ITCMD saltou de aproximadamente R$ 3,1 bilhões em 2019 – pré-pandemia – para R$ 4,0 bilhões em 2021 ; já no estado do Rio de Janeiro a arrecadação subiu de R$ 1,0 bilhão em 2019 para R$ 1,5 bilhões em 2021.

Uma das consequências da pandemia foi que as famílias passaram a buscar cada vez mais informações sobre os diversos impactos patrimoniais de eventuais consequências oriundas, seja do coronavírus ou de outras doenças, como uma incapacidade permanente ou temporária e, até mesmo, uma eventual sucessão. Dois instrumentos muito utilizados na pandemia para os casos de incapacidade foram a procuração por instrumento público e o testamento vital.

Procuração por Instrumento Público
O instrumento de mandato pode ser uma solução muito simples e eficiente para os casos de incapacidade. Ao longo da pandemia o estado de incapacidade se tornou mais frequente quando pessoas contaminadas pelo coronavírus passaram um longo período no hospital, ficando inacessíveis até mesmo para os seus familiares. Assim, ao nomear preventivamente um procurador por meio de um instrumento público de mandato este ficaria responsável por resolver questões do dia a dia tais como movimentar contas; realizar pagamentos e operações bancárias; compra e venda de bens móveis e imóveis; e representá-lo diante de órgãos públicos. Em casos de doença grave pode ser preciso atuar muito rapidamente para garantir que todo o auxílio seja prestado ao enfermo e, com a procuração feita por instrumento público, que tem uma maior aceitação tanto nos órgãos públicos como entes privados, é garantida a agilidade necessária para lidar com o assunto.

Testamento Vital
Durante a pandemia, o testamento vital ficou ainda mais conhecido. Diferente do testamento patrimonial, no qual a pessoa estabelece as regras para divisão do seu patrimônio após a morte, como veremos, o testamento vital serve para que o testador indique quais são as medidas e cuidados que devem ser tomados no caso de incapacidade. Para o cumprimento destas vontades, o indivíduo indica um curador especial, que pode ser um familiar ou um terceiro, que costuma ser um amigo de sua confiança, que não necessariamente será remunerado por isso, mas que poderá usar e dispor dos recursos do enfermo para cuidar dele. Assim, diante da gravidade dos casos que vimos ao longo da pandemia nos últimos dois anos ou até mesmo por doenças derivadas desta, certas pessoas optaram por deixar um testamento vital para que, em casos de incapacidade parcial ou até mesmo total, sua vontade pudesse ser cumprida, especialmente em relação à sua decisão sobre a quais procedimentos médicos seria submetido ou até mesmo sobre ser ou não mantido vivo por aparelhos.

Já para tratar dos instrumentos utilizados para um melhor planejamento da sucessão, é preciso que estejam claras quais são as regras decorrentes do regime de bens escolhido pelos nubentes na época do casamento ou por conta da união estável estabelecida entre os companheiros, para regular a relação patrimonial. O regime de bens será de extrema importância tanto para os casos de sucessão como de separação -, principalmente no que diz respeito à diferença sobre os efeitos em vida (em uma eventual separação) e após a morte (sucessão).

Regime de Bens
O Regime da Comunhão Parcial é aquele em que os bens adquiridos onerosamente ao longo da união estável ou do casamento se comunicam automaticamente entre os companheiros ou cônjuges (“bens comuns”), enquanto os bens particulares não são objeto de comunicação (ex: bens recebidos a título de doação ou herança, ou adquiridos antes do casamento). A vantagem deste tipo de regime é que sobre essa parcela do patrimônio comum ao casal, não há a incidência do ITCMD.

O que muitos ainda desconhecem é que, no momento do falecimento, o companheiro ou cônjuge se torna herdeiro e passa a ter direito sobre uma parcela dos referidos bens particulares. Além disso, nos bens comuns ele é titular desde o momento da aquisição, o que chamamos de meação. Então, em havendo bens particulares o cônjuge ou companheiro terá direito à metade do patrimônio comum, acrescido de um outro percentual dos bens particulares, à depender do número de herdeiros.

Já no regime da Separação Total de Bens o casal escolhe pela “absoluta incomunicabilidade, mantendo sempre e invariavelmente dois acervos separados” . Assim, em caso de divórcio os bens não se comunicam entre os companheiros ou cônjuges. Contudo, na sucessão, o companheiro ou cônjuge sobrevivente concorre em igualdade com os demais herdeiros, em proporções também a serem observadas de acordo com a lei e com eventuais instrumentos sucessórios elaborados, como por exemplo, o testamento.

Existe ainda o regime da comunhão total, muito comum no passado - dado que a omissão dos nubentes sobre o regime a ser adotado, implicava na escolha deste regime - no qual todos os bens, particulares ou comuns, formam “um único patrimônio, sem haver distinção entre bens adquiridos antes ou após o casamento, se a título gratuito ou oneroso” . Neste caso todos os bens se comunicam entre os companheiros ou cônjuges, conforme o caso. Na mesma linha da comunhão parcial, também não há incidência do ITCMD sobre a meação.

Assim, verifica-se que a escolha do regime de bens tem uma relevante e significativa influência para o planejamento patrimonial e sucessório. Sem um planejamento, perde-se a referência e o controle do direito do cônjuge/companheiro sobre os bens do casal. Por isso, é relevante avaliar as alternativas que estão disponíveis para administrar a porção do patrimônio do casal, de maneira que o benefício da herança seja conferido aos herdeiros na proporção que o testador entender ser a mais correta.

Agora que já tratamos dos regimes de bens, vamos apresentar alguns instrumentos que comumente são utilizados seja no caso de planejamento sucessório para que os familiares consigam passar por este momento complicado com alguma diretriz de qual seria a vontade do falecido.

Testamento
Para tratar do tema de testamento é importante esclarecer que o patrimônio do testador “deve ser dividido em duas partes: a primeira, denominada ‘parcela legítima’, deve ser destinada aos herdeiros necessários, e a segunda, denominada ‘parcela disponível’, pode ser livremente destinada pelo testador da forma e para quem quiser” . Assim, a parcela legítima deve ser destinada aos herdeiros necessários (filhos; cônjuge/companheiro; netos; etc), respeitada a proporção prevista em lei, enquanto a disponível pode ser deixada para qualquer pessoa (inclusive para os herdeiros), em proporções distintas. A escolha pela transmissão do patrimônio com essa definição só poderá ser feita através de testamento.

No momento do falecimento, a lei aplicável à sucessão é a do último domicílio do de cujus. Assim, sendo o falecido residente no Brasil, mas também possuindo bens no exterior, aplicam-se as regras do direito civil brasileiro à sucessão estrangeira, incluindo a de que o juiz brasileiro não tem capacidade para processar e julgar a partilha de bens localizados em outro país. Com isso, caso o cliente possua recursos e/ou uma estrutura offshore, recomenda-se que seja feito um testamento no exterior, ou outro instrumento/veículo sucessório conforme o caso, para contemplar a maneira que esta parcela do patrimônio será partilhada, observada a regra sobre a legítima e disponível. Caso contrário, há o risco de compensação do valor no inventário processado no Brasil, caso haja contestação de algum herdeiro.

Além de dispor sobre a partilha dos bens, o testamento no Brasil ou no exterior também pode ser usado para indicar: (i) a escolha específica dos bens a serem destinados para cada herdeiro, respeitada a parcela legítima; (ii) a forma de distribuição da parcela disponível; (iii) uma pessoa para administrar os recursos de herdeiro menor de idade, que não o seu representante legal, podendo ainda indicar a idade que tal herdeiro passará a administrar a parcela disponível que vier a receber; (iv) a forma de receber os recursos caso o herdeiro seja residente fiscal em outro país; (v) como o patrimônio será entregue caso um determinado herdeiro seja pré-morto, renuncie ou não possa receber a herança; e (vi) a inclusão de regras de incomunicabilidade e impenhorabilidade.

Codicilo
Por sua vez, orientações referentes a bens de pequena monta passaram a ser deixadas através do codicilo, que é um documento particular por meio do qual o indivíduo deixa uma orientação sobre o bem a ser herdado (ex: forma de gastar os recursos; cuidados, como dividir joias e/ou obras de arte). Por ser um documento particular, ele também é muitas vezes usado como um documento para deixar um recado afetuoso que pode confortar o familiar após o falecimento do de cujus.

A depender da estrutura patrimonial, o codicilo pode ser o único documento deixado pelo de cujus, não precisando da existência de um testamento brasileiro para que tenha validade. Além disso, por ser um documento particular, não possui um efeito vinculante e não cria uma obrigação entre as partes, mas tão somente uma orientação/guia de como o de cujus gostaria que determinado ato fosse conduzido, na sua falta.

Por fim, com o início da pandemia, muitas relações de namoro passaram a ter elementos que poderiam confundi-las com uniões estáveis, como ambos os namorados morando em um mesmo domicílio. Por isso, muitas vezes os namorados optaram por firmar um contrato de namoro.

Contrato de Namoro
Este é um contrato que tem como objetivo confirmar exatamente essa falta de intenção de constituir família e a vontade das partes de que isso prevaleça sobre qualquer eventual questionamento contrário. A importância dessa declaração do casal se faz necessária diante da equiparação da união estável ao casamento (resguardadas as formalidades) e da aplicação de todos os efeitos patrimoniais e sucessórios indicados a ambos os institutos. Assim, pessoas de qualquer idade que durante a pandemia passaram a ter receio da nova dinâmica trazida pela pandemia poder configurar uma união estável, optaram por celebrar um contrato para deixar esse desejo claro.

No fundo, o contrato serve como prova de uma vontade que deve prevalecer sobre uma determinada rotina que possa vir a suscitar dúvida. Contudo, caso ainda assim reste dúvida sobre o namoro, conservadoramente o contrato pode prever quais seriam as regras a serem seguidas caso a união estável fosse verificada. Isso incluiria indicar a data que poderia ser considerada como início da “suposta” união estável e o regime de bens aplicável.

 

Assim, por ter a pandemia mostrado a fragilidade da vida e da nossa própria capacidade de controlá-la, o planejamento patrimonial e sucessório voltou a se tornar um assunto ainda mais comentado e um recurso muito usado pelas famílias como forma de perpetuar o seu desejo e legado. Apenas nos seis primeiros meses de 2021, conforme dados do Colégio Notarial do Brasil, o número de testamentos públicos celebrados aumentou em 41,7%, ficando São Paulo em primeiro lugar no ranking nacional. Além disso, cada vez mais as pessoas têm procurado seus assessores para que o planejamento sucessório seja feito de forma personalizada à situação de cada família, diminuindo todo o trauma causado pela perda de um ente querido, e deixando as diretrizes a serem seguidas pelos seus familiares.

Em tempos de pandemia em que laços familiares, societários, fraternos etc. são abalados de um dia para o outro, um planejamento sucessório e patrimonial adequado à cada um pode garantir um mínimo de proteção aos seus pares e assegurá-los o máximo possível.

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