Cartas

Carta 10

junho | 2008

1. Aplicando a Teoria das Ciências Naturais nos Mercados Financeiros

Em nossa última carta, escrevemos sobre como evoluiu a teoria convencional sobre os riscos dos mercados. Também chegamos a discutir a influência das emoções nas decisões de investimentos, citando contribuições da psicologia e neurociência, que questionam o postulado da racionalidade perfeita dos agentes econômicos na tomada de decisão em determinados tipos de situações. Nesta carta vamos abordar como a contribuição de outras ciências, no caso, ciências naturais como a Física e a Biologia, estão gradualmente tendo influências sobre o mundo da Economia e Finanças. Não existe até o presente momento uma teoria unificada sobre as questões que serão abordadas nesta carta, mas mesmo assim, apresentaremos e discutiremos idéias que já permitem derivar insights interessantes relacionando o que acontece na natureza com o funcionamento da economia e dos mercados.

 

Muitas destas idéias representam, de alguma maneira, um rompimento com relação às teorias tradicionais das Ciências Econômicas e das Finanças, mas, apesar da nossa formação tradicional fundamentalista, que inclusive nos ajuda a reconhecer os pontos falhos da teoria convencional, acreditamos na importância de se manter uma mente aberta assumindo uma postura de questionamento, principalmente em situações-limite onde esta teoria tradicional tem dificuldade em lidar.

 

Na primeira seção da carta escrevemos sobre terremotos e avalanches e relacionamos estes fenômenos aos funcionamentos dos mercados. Na segunda seção vamos falar sobre a economia e os mercados quando vistos sob a ótica da teoria do caos e da complexidade. Na terceira seção falaremos sobre a influência da Biologia no entendimento dos mercados. Na última seção vamos ver como as questões apresentadas nas seções anteriores podem nos ajudar a pensar sobre a atual crise das hipotecas subprime nos EUA que jogou a economia americana numa recessão com conseqüências ainda incertas sobre o resto do mundo e os mercados financeiros.

 

Cisnes Negros, Abalos Sísmicos, Montes de Areia e os Mercados Financeiros

A teoria convencional das finanças tem dificuldades para explicar inúmeras ocorrências práticas. Um caso clássico é a segunda-feira negra em 19 de outubro de 1987, quando o índice S&P500 da bolsa americana caiu 20 % em um dia. Nassim Taleb em seu mais recente livro, O Cisne Negro, retoma o problema da indução levantado pelo filósofo Karl Popper sobre a impropriedade de se tirar conclusões de fatos e experiências. O exemplo mais conhecido do problema da indução é que acreditar que todo cisne é branco, porque nunca se encontrou um cisne negro. Desta maneira o autor critica o fato dos investidores extrapolarem para frente os acontecimentos e tendências do passado sustentando que os investidores dão pouca importância à possibilidade de eventos extremos. Nesse sentido, um evento como a segunda-feira negra é considerado um “cisne negro”, ou seja, algo totalmente inesperado.

 

Na natureza, catástrofes como terremotos são considerados eventos extremos e curiosamente, quando os mercados sofrem fortes perdas repentinas, costuma-se usar a metáfora de que os mercados passaram por um terremoto. De fato, pesquisas recentes sobre abalos sísmicos indicam que esta metáfora realmente procede.

 

Na teoria tradicional das finanças, o conceito de eficiência de mercado significa que os preços refletem completamente todas as informações disponíveis, portanto os preços se movem ao sabor de novas notícias que são aleatórias e, portanto as mudanças de preços podem ser modeladas segundo um passeio aleatório com distribuição gaussiana. Os agentes, arbitrando as oportunidades, garantem que preço e fundamentos caminhem lado a lado. Não existe espaço para lucrar com estratégias de análise técnica, já que padrões de preços passados não importam para o futuro.

 

Na prática percebe-se que geralmente a volatilidade e a magnitude dos movimentos dos preços é maior do que aquelas que as notícias justificariam. Mais do que um passeio aleatório, os movimentos do mercado acionário se assemelham a terremotos. Em se tratando de terremotos, apesar se sabermos que são causados por movimentos das placas tectônicas na crosta terrestre, não existem ciclos, sinais ou quaisquer fatores que possam indicar a proximidade da ocorrência.

 

Eles simplesmente acontecem. Não existe uma intensidade típica média para terremotos. A intensidade dos terremotos não segue uma distribuição de probabilidades Gaussiana em forma de sino, mas sim uma Lei de Potência. Esta lei de potência caracteriza-se por gerar eventos pequenos em maior quantidade, mas com poucos eventos de grandes proporções. É um tipo de distribuição de probabilidade em que a ocorrência de eventos extremos é bem mais provável do que na distribuição Gaussiana. No caso específico da segunda-feira negra, se o mercado se movesse segundo um passeio aleatório com variações de preços gaussianas, a probabilidade da ocorrência seria de 10-148! Já se fosse modelado como uma Lei de Potência, sua probabilidade seria de 10-5, ou seja, uma grande chance de ocorrer uma vez para cada período de 100 anos.

 

Em seu livro sobre catástrofes naturais, Mark Buchanam cita o estudo de três físicos Bak, Tang e Wisenfeld sobre o comportamento de sistemas dinâmicos em desequibrio. Eles simularam em computador a brincadeira de empilhar grãos de areia e chegaram à noção de Estado Crítico. Os físicos se perguntaram, primeiramente, qual era o tamanho de uma avalanche típica? Eles então descobriram que não existe avalanche típica. Poderia-se observar desde alguns poucos grãos rolando para baixo como a total destruição do monte de areia.

 

Quando os físicos resolveram mapear o experimento colorindo as áreas mais inclinadas com vermelho e as áreas mais planas com verde perceberam que conforme o monte de areia vai crescendo forma-se uma rede de instabilidade de áreas vermelhas. Grãos adicionais direcionados para estas áreas poderiam, dependendo de como as áreas se conectavam, detonar uma pequena avalanche, ou uma avalanche de grandes proporções. O que faz uma avalanche ser maior do que outra não tem nada a ver com sua causa original ou alguma situação especifica na pilha de areia.

 

O Estado Crítico seria então aquele ponto em que o sistema está extremamente instável,que, no caso do exemplo do monte de areia, ocorre quando o sistema está prestes a produzir uma avalanche de grandes proporções faltando para isso que apenas um único grão de areia a detone. Podemos então estender o conceito de estado critico para o mundo econômico. É bastante comum nos depararmos com situações e desequilíbrios insustentáveis, mas que acabam perdurando por bastante tempo. Por algum motivo, estes desequilíbrios acabam se configurando e a instabilidade vai se acumulando até atingir o ponto do estado crítico em que mudanças profundas e abruptas acontecem, muitas vezes sem um gatilho específico. A formação e o estouro de bolhas nos preços dos ativos financeiros, tão freqüente no passado recente conforme evidenciado pela bolha de tecnologia no final dos anos noventa e a bolha imobiliária que se seguiu, se enquadram neste tipo de raciocínio.

 

Caos, Complexidade, Economia e os Mercados

Sistemas instáveis remetem à literatura da física moderna sobre Teoria do Caos e Sistemas Complexos. A aplicação de caos e complexidade na economia é um campo relativamente recente. A evolução tecnológica, em particular, a capacidade computacional de trabalhar com métodos numéricos e simulações foi o ingrediente que faltava para o campo deslanchar. A teoria do caos e complexidade tem origem no estudo da meteorologia. No início dos anos sessenta, Edward Lorenz manipulando um sistema de equações que deveria prever o comportamento da atmosfera, digitou como atalho um número menor de casas decimais numa das variáveis do sistema e obteve resultados finais completamente diferentes. Este resultado ficou marcado pela célebre frase em palestra anos mais tarde com o título – Predictability: Does the flap of a butterfly’s wings in Brazil set off a tornado in Texas? O que ficou conhecido como efeito-borboleta.

 

Em linhas gerais um sistema caótico complexo pode ser caracterizado por algumas propriedades básicas como Não- Linearidade ou sensibilidade às condições iniciais, Inter- conectividade, Emergência e retro-alimentação. A não- linearidade decorre da forma matemática que descreve a evolução do sistema incluindo multiplicação entre variáveis ou potências. Na prática poderíamos dizer que esta não linearidade implica respostas não proporcionais a choques, ou seja, o sistema fica bastante sensível a pequenas mudanças. A interconectividade é a ligação entre diferentes elementos do sistema. A Emergência nada mais é do que o conjunto de propriedades que aparecem como resultado do funcionamento do sistema. A retro-alimentação refere-se ao fato de os “outputs” que “emergem” do sistema num período servem como “inputs” em períodos posteriores.

 

A Interconectividade é uma caracterítica marcante de sistemas sociais. Para exemplificar isto, em 1967, o psicólogo Stanley Milgram decidiu fazer uma experiência. Ele enviou cartas para pessoas no estado do Kansas e Nebraska com instruções de que estas cartas deveriam ser re-enviadas para destinatários em Boston. O Destinatário era identificado apenas pelo nome, profissão e uma região aproximada.

 

Os participantes deveriam enviar a carta para a primeira pessoa que eles pensassem que poderia conhecer o destinatário final. Esta pessoa, por sua vez iria repassá-la para outra pessoa que julgasse que poderia conhecer o destinatário final e assim por diante. O resultado foi que a grande maioria das cartas chegou corretamente ao destinatário e a mediana do numero de conexões foi de seis pessoas.

 

E quanto ao sistema econômico e os mercados? A Economia e os mercados financeiros podem ser vistos como um grande sistema em que os agentes com motivações diferentes interagem e o comportamento os preços relativos seria então uma das propriedades emergentes do funcionamento do sistema.

 

A questão da influência de um agente sobre o outro é muito importante. A idéia de que os indivíduos podem ser influenciados diretamente pelo comportamento dos outros é bastante poderosa. Em 1999, Lux and Marchesi publicaram na revista Nature um artigo no qual modelaram o mercado financeiro da seguinte forma: três tipos básicos de agentes – Fundamentalistas, Otimistas e Pessimistas. Os fundamentalistas compram ações que consideram baratas frente ao seu valor intrínseco que varia suavemente e vendem aquelas que consideram caras. Os otimistas compram acreditando que os preços das ações vão subir enquanto que os pessimistas, ao contrário, vendem acreditando que os preços vão cair. Mas os pesquisadores incluem um componente fundamental: A cada momento, cada agente tem uma pequena chance de mudar de opinião. Se o número de otimistas superar o de pessimistas a opinião é a de que os mercados vão continuar subindo. Como as pessoas são influenciadas pela opinião das outras, é mais provável que mais agentes se tornem otimistas. Da mesma forma, quando os mercados caem por algum tempo alguns otimistas podem se tornar pessimistas ou fundamentalistas.

 

Desta forma, é possível gerar flutuações de preços muito maiores do que aquelas dos fundamentos, assim como ocorre no mundo real. A maneira como a rede de agentes se organiza é tal que um pequeno desequilíbrio para uma direção, por exemplo para o otimismo, pode gerar preços persistentemente em alta, espalhando otimismo para mais agentes e desta maneira o desequilíbrio vai crescendo e se acumulando, até que eventualmente ele se reverte. Alguns fundamentalistas podem achar que as ações estão absurdamente caras e vendê-las detonado uma pequena queda nos preços. Repentinamente alguns agentes podem tornar-se pessimistas e os preços caem mais.

 

Ou seja, a maneira como os mercados se organizam, o “mood” dos agentes, influenciando uns aos outros com retro- alimentação é tal que o estado crítico que vimos na seção anterior emerge endógenamente como uma característica do sistema. As simulações dos pesquisadores mostram que com hipóteses simples, eles conseguiram reproduzir movimentos estatisticamente similares aos dos mercados financeiros, inclusive a possibilidade de um movimento de queda de 20% em um dia. A distribuição de probabilidade dos preços gerados pela simulação segue uma lei de potência, e os movimentos abruptos de maior magnitude ocorrem uma vez que o Estado Crítico é atingido.

 

Biologia, Adaptação e Evolução e os Mercados Financeiros

Em fins de 1859, Charles Darwin publicou a Origem das Espécies e propôs o conceito de evolução das espécies através da Seleção Natural. A seleção natural é o processo pelo qual as características hereditárias favoráveis das espécies tornam- se mais comuns em gerações futuras enquanto que aquelas menos favoráveis tendem a desaparecer. Para melhor descrever o comportamento dos mercados, um grupo de cientistas tem simulado modelos baseados nos agentes que utilizam diferentes estratégias. Estes cientistas fazem uma analogia com a Biologia Evolucionária onde estas diferentes estratégias podem ser vistas como “espécies”.

 

Estes modelos sustentam que em situações de extrema complexidade, os agentes não usam estritamente a dedução racional e lógica, mas sim, e principalmente, a indução, que inclui, entre outras coisas suas experiências anteriores. Esta nova forma de tomar decisão em situações complexas podemos denominar de “racionalidade indutiva”. Racionalidade indutiva inclui reconhecimento de padrões, modelos internos particulares etc. Nesse sentido, os agentes estratégias. Um conjunto de estratégias podem ser competidoras, outras complementares que se reforçam mutuamente. Portanto, uma dinâmica é criada em que combinações particulares de estratégias poderiam criar padrões ou estruturas de mercado as quais poderiam mudar o comportamento de outros agentes enquanto buscam explorar oportunidades que estes padrões geram, que por sua vez poderiam causar outros agentes a reagir e assim por diante.

 

Ou seja, o padrão de preços que emerge dos mercados é completamente determinado pela dinâmica da interação entre os agentes. Alguns investidores podem ter lucro por um tempo, novos investidores podem entrar e alocar mais capital onde existem oportunidades, enquanto que outros investidores sairão do mercado quando sua estratégia falhar. Inclusive, estes modelos justificam na racionalidade indutiva, a existência de estratégias técnicas (como a análise gráfica) que existe na prática, mas a teoria convencional dos mercados eficientes nega que poderiam gerar lucros consistentes. Este tipo de estratégia poderia sim gerar lucros consistentes, dependendo da dinâmica populacional que vai evoluindo no sistema.

 

Doyne Farmer em Forças de Mercado, Ecologia e Evolução, desenvolve um modelo mais simples com apenas poucos tipos de agentes: Fundamentalistas, cujo comportamento já vimos no modelo de Lux e Marchesi, Agentes Técnicos cujas estratégias dependem dos padrões de preços, Market Maker, o agente que compra e vende os ativos, como um corretor que existe no mundo real. O valor intrínseco das ações seguiria um passeio aleatório gaussiano. Farmer experimentou diversas combinações de estratégias para os agentes técnicos e mostrou que os preços que “emergem” do sistema seguem características bastante reais inclusive com movimentos de volatilidade concentrada, isto é, períodos em que a volatilidade nos mercados é baixa, alternada com regimes de volatilidade mais alta, que irrompe repentinamente.

Neste artigo, Farmer constrói uma tabela de analogia entre Biologia Evolucionária e Mercados Financeiros:

 

 

Os mercados seriam eficientes?

Segundo esta nova visão evolucionista do mercado, os mercados não são eficientes no conceito da teoria tradicional que discutimos anteriormente, mas sim um ecossistema de diferentes estratégias competitivas que evoluem ao longo do tempo. Os mercados de fato são estruturas bastante poderosas de processamento de informações, ou seja, são “eficientes” em processar informações e evoluir, mas não no sentido das finanças tradicionais. Os investidores estariam sempre atuando em seu próprio benefício, mas nem sempre seriam racionais.

 

Num ponto de vista mais amplo, a teoria evolucionária dos mercados explica que à medida que a tecnologia da informação avança, abre-se ainda mais o espaço de possíveis estratégias de investimento e desta maneira nós assistimos ao dramático aumento do número dos chamados Hedge-Funds que podem usar vários tipos de instrumentos financeiros para lucrar com mercados em alta e em baixa usando variadas estratégias.

 

A crise do Subprime: Como um calote de uma hipoteca imobiliária na Flórida pode levar a uma forte desvalorização da moeda da Islândia?

As sementes da atual crise das hipotecas subprime, foram lançadas no início desta década. Após o estouro da bolha das ações das empresas de tecnologia, os juros baixos combinados à inovações no mercado de crédito e derivativos geraram um boom de crédito imobiliário. O aparecimento de hipotecas com taxas ajustáveis (ARM) em que a taxa que o mutuário paga é fixa e baixa nos primeiros anos do empréstimo sendo ajustada a taxas flutuantes num período futuro, foi um importante componente para manter o fluxo de crédito abundante mesmo após o FED ter começado a subir a taxa de juros em 2004. O ambiente de ampla liquidez global que produzia juros baixos na renda fixa aumentou a busca por retornos superiores.

 

Neste ambiente, a securitização destes empréstimos imobiliários ao “empacotar” créditos de diferentes perfis de risco, produzia retornos prometidos superiores aos da renda fixa, com um risco percebido como baixo. Estes derivativos lastreados em hipotecas eram então vendidos para investidores de diferentes perfis, não apenas americanos como também, poupadores de outras partes do mundo e muitos destes instrumentos foram parar em balanços de bancos e outras instituições financeiras, além de Hedge-Funds.

 

Desta forma, a oferta de crédito imobiliário aumentava a demanda as vendas e a construção de residências e os preços desta subiam gerando riqueza para o consumidor americano que gastava toda a sua renda disponível (poupança próxima de zero). O sistema funcionava numa só direção com uma retro-alimentação positiva entre preços de residências mais altos e endividamentos lastreados num ativo que só se valorizava. Assistimos então a proliferação de originadores, securitizadores e vendedores de hipotecas num processo que gerou desequilíbrios em grande escala.

 

Eventualmente, o Estado Crítico emergiu. Os preços das residência atingiram o pico em meados de 2005, mas os desequilíbrios seguiram se acumulando. Quais foram os grãos de areia? Bem, na última semana de julho deste ano dois fundos de investimentos em derivativos de hipotecas imobiliárias, muito alavancados, do Bear Sterns sofreram fortes perdas com o aumento das taxas de inadimplência. Mas, conforme vimos acima, uma vez que o Estado Crítico é atingido, a natureza dos eventos detonadores da avalanche importa pouco.

 

A partir daí seguiu-se um forte aumento da aversão ao risco com o grau de incerteza gerado pela interconexão do sistema que espalhou o crédito duvidoso por diversas e respeitadas instituições financeiras não restritas aos EUA. Uma onda de desalavancagem de bancos, emprestadores, hedge-funds etc. varre o sistema financeiro desde agosto de 2007. Partes do mercado de crédito nos EUA pararam de funcionar, e inúmeras instituições financeiras divulgaram perdas com a marcação a mercado de ativos de alguma forma atrelados a hipotecas. A confiança do consumidor está abalada, o mercado de trabalho está se deteriorando num padrão consistente com uma recessão em curso. No início da crise, muitos analistas desdenhavam o potencial de perdas argumentando que a parcela de hipoteca subprime ajustável, era proporcionalmente pequena com relação ao mercado de crédito como um todo. O que estes analistas não levaram em consideração era justamente a questão da contaminação.

 

A desalavancagem e escalada da aversão ao risco expôs os agentes mais debilitados. O próprio Bear Sterns foi vítima da crise. Em Março de 2008 assistimos a uma corrida contra a moeda da Islândia que chegou a se desvalorizar mais de 20% e obrigou o Banco Central a subir os juros agressivamente. A Islândia mantinha, até então impunemente, um déficit em transações correntes de proporções estratosféricas.

 

Enfim, a estrutura da economia e dos mercados, com a interação constante entre os diversos agentes cujo comportamento influencia uns aos outros numa complexa teia de conexões, pode ser visto como um Sistema Dinâmico nos moldes daqueles que a Teoria do Caos estuda, com evolução e adaptação característico de ecossitemas biológicos. Acreditamos que tanto as questões que tratamos nesta carta quanto aquelas sobre as Finanças Comportamentais que tratamos na carta anterior desafiam o status quo da teoria tradicional, mas é desta forma que o conhecimento e a ciência evoluem e devemos estar sempre atentos para incorporar novas ferramentas em nosso processo decisório que nos ajudem a navegar em tempos de mares turbulentos como o atual.

2. A Economia da Arte

Em uma discussão sobre arte, é esperado que abordemos diferentes tópicos sobre problemas filosóficos, estéticos, históricos ou sociológicos do tema. Por muitas vezes, tais assuntos, possuem grande amplitude, e os mais complexos e heterogêneos pontos de vista. Contudo, existe um ponto valioso para discussão, ponto este que quase sempre é deixado de lado, que é o aspecto econômico da arte. Obviamente a discussão não é a influencia da economia na tendência da arte (o que acreditamos ser pequena), mas sim a sua importância no comportamento do valor das obras de arte.

 

Via de regra, só podemos definir o preço de uma obra por seu valor de venda em um leilão ou algo assim, logo é impossível apreçar um quadro como a Mona-Lisa de Da Vinci, dado que nunca será vendida, por ser patrimônio mundial. Porém, podemos observar o aumento nos preços de obras que foram negociadas ao longo dos anos. Em março de 1987, Íris, de Van Gogh, foi vendido por US$53,9 milhões, em maio de 1990, Bal Au Moulin de la Galette, de Renoir, foi vendido por US$78,1 milhões e Retrato do Dr. Gachet, de Van Gogh, por US$82,5 milhões. Em 2004, Rapaz com um cachimbo, de Pablo Picasso foi arrematado por US$104,1 milhões e em junho de 2006, o Retrato de Adele Bloch-Bauer, obra de Gustav Klimt foi vendida por 135 milhões de dólares, tornando-se até então o quadro mais caro do mundo. Ao longo dos anos 80, a demanda por pinturas era tão alta, que trabalhos de artistas ainda vivos como Jackson Pollock, Jasper Johns, Roy Lichtenstein foram freqüentemente negociados a cifras próximas dos US$10 milhões. Podemos constatar com isso uma tendência de alta de preços? O investimento em arte gera um retorno atrativo?

 

Diferente de um mercado constituído por um bem comum, o equilíbrio de preço no mercado de arte é discutível, principalmente pelas características das obras de arte como bem de consumo. São diversos os fatores que tornam o preço inelástico, como por exemplo, o fato de que cada obra é única, tendo uma única fonte de oferta (o seu possuidor). Como existe uma assimetria de informação nas transações neste mercado, o valor de uma obra de arte é altamente subjetivo e especulativo. Obviamente, alguns pontos podem ser considerados determinantes para a valorização de um quadro, tais como a notoriedade do artista, qualidade da obra, assinatura, temática e conservação. Logo, ao comprar uma obra pictórica, é esperado que seu preço seja impulsionado pela notoriedade do artista, contudo, a obra deve representar as características de seu autor(a) ou de sua fase mais marcante para que sua cotação seja máxima. Ou seja, a qualidade da obra em relação a outras do mesmo autor(a) é de grande influencia em seu preço. A temática é um fator decisivo para o preço de uma obra, contudo é ligado a modismos, sendo difícil dizer que tipo de tema será mais procurado ou se os atuais temas valorizados continuarão a serem preferidos. Um claro exemplo são os impressionistas, que muito criticados à principio, pouco valiam, e hoje são supervalorizados. Por fim, dois fatores óbvios na formação do preço de uma obra são o seu estado de conservação e o grau de autenticidade, ao qual estão associadas assinatura da obra, local onde é negociada e seu histórico.

 

Assim como podemos apontar pontos que teoricamente contribuem para a valorização das obras, também podemos apontar alguns riscos, como modismos, influencias conjunturais, falsificações ou perdas. A influencia da temática nos preços mostra como o modismo pode valorizar muito uma obra, contudo essa volatilidade também pode trazer os preços para níveis menores, já que mestres reconhecidos e consagrados podem ter sua cotação diminuída por serem preteridos por novos artistas, ou obras antes muito procuradas podem ficar anos sem ser negociadas por estarem fora de moda. Além do modismo, outro risco relevante associado ao investimento em obras de arte que deve ser considerado, é o risco da conjuntura econômica. A falta de correlação entre as cotações de pinturas com a atividade econômica é discutível, principalmente pela falta de dados gerada pela baixa liquidez em períodos de recessão, o que talvez seja o principal problema associado à esse fator.

 

Por fim, como qualquer outra reserva física de valor, obras de arte estão suscetíveis a roubo e a destruição, além de falsificações, um risco especifico desse mercado. Os trabalhos de alguns falsários são tão perfeitos que os especialistas têm que recorrer a técnicas modernas para descobrir as falsificações, como radiografia, analise micro-química e fotografia em infravermelho, entre outras.

 

Voltando à analogia da arte como investimento, assim como existem diversos custos associados à negociação de qualquer ativo (corretagem, custodia, etc.), o mercado de arte também possui seus custos. A maioria das transações ocorrem em casas de leilões, como a Sotheby's (a casa de leilões mais antiga do mundo ainda aberta) ou a Christie's (líder no mercado de artes, sendo palco dos cinco mais caros leilões do mundo), e estas cobram suas taxas sobre qualquer venda realizada. Outras despesas intrínsecas à aquisição de obras pictóricas são os custos com seguro (avaliação e premio), e os custos com conservação da obra (restaurações, cuidados especiais com deslocamento, entre outros). Por fim, a ultima idiossincrasia relevante ao mercado da arte, são os agentes que atuam nele, sendo estes artistas, leiloeiros, colecionadores ou marchands.

 

Essenciais para a existência do mercado de arte, os artistas são os produtores desse mercado. Obviamente sua importância é máxima, contudo, a sua influencia no mercado é muito especifica. Eventos com um artista podem gerar uma grande influencia no preço de suas obras, porém esse efeito não será repassado para outras obras, logo é raro um artista influenciar todo o mercado da arte. Os leiloeiros, ou casas de leilões, atuam como intermediadores no mercado, e são fundamentais para a liquidez do mercado. Os colecionadores são os consumidores do bem, e como não existe uma unidade nos interesses destes, a sua influencia ocorre de forma aleatória. Grandes protagonistas deste mercado, os marchands, são por analogia, como os especuladores para o mercado de capitais. A atribuição de um marchand é de escoar a produção artística, através de consultoria, assessorando possíveis compradores, ou promovendo artistas plásticos ao comprar, vender e intermediar as obras, já que muitos são donos de galerias de arte. Existem algumas formas dos marchands influenciarem o mercado da arte, como emprestar obras para exposição de um museu, promover eventos, ou escrever colunas em jornais e revistas especializadas. Um bom marchand deve reconhecer e comprar obras de pintores ainda desconhecidos, conservá-las durante anos, e tentar lucrar com sua valorização. É difícil prever o tempo para essa valorização: foram necessários cinqüenta anos para os impressionistas atingirem preços elevados, trinta para os cubistas, um pouco menos para os abstratos. Mesmo para marchands talentosos, é difícil prever que tipo de obra trará um retorno satisfatório.

 

Conhecendo um pouco mais da lógica econômica do mercado da arte (fatores que influenciam preços, riscos, custos e agentes que atuam), podemos analisar a compra de obras de arte como um investimento e compará-la a outros tipos de ativos. Poucos estudos acadêmicos foram escritos sobre o assunto, entretanto, alguns trabalhos que abordam este tema mostram resultados interessantes. Pioneiro no assunto, o estudo de William Baumol em 1986, começa discutindo se existe um equilíbrio no mercado de arte e conclui que, pelas características do bem, não é plausível este equilíbrio nos preços das obras de arte. Para analisar o investimento, Baumol junta dados de modo a tentar representar todo o mercado de arte. Depois de se deparar com problemas de falta de continuidade de dados, ele separa e deflaciona dados de 640 transações entre 1652 e 1961. Ao analisar o retorno das transações (levando em consideração custos, comissões e usando a libra como moeda base), o estudo chega a uma taxa média de retorno real de 0,55% a.a., cerca de um terço da taxa real conseguida com obrigações do governo.

 

Além de ser baixa, a taxa para investimentos em arte é altamente dispersa, o que representa um alto risco para um investimento (variando entre -19% a.a. e 27% a.a.). Baumol também conclui que o retorno dos investimentos em arte é aleatório, seguindo uma distribuição normal. Com isso, a conclusão do seu trabalho é, que olhando do ponto de vista estatístico, a compra de arte não deve ser vista do ponto de vista financeiro. Em outro estudo, Goetzman encontra uma alta correlação entre os preços das obras e o índice de ações de Londres e conclui que usar obras de arte para diversificar investimentos não funciona muito bem.

 

Motivações financeiras raramente são razões para aquisição de quadros, logo é esperado que o investimento em obras de arte na maioria das vezes esteja associado à fatores diversos como satisfação, prazer estético, realização, legitimação social ou outras preferências do comprador. A compra de arte para fins puramente especulativos simplesmente não parece eficiente do ponto de vista de um alocador de recursos, dado o trabalho e risco envolvidos para conseguir retornos acima da média neste mercado. Entretanto, já que um colecionador adquire obras de arte por prazer, porque não considerar sua coleção como parte de seu patrimônio total, e tomar vantagem desta forma de investimento? Toda a dificuldade de manutenção de sua coleção, trabalho com novas aquisições e envolvimento com o mercado de arte será prazeroso para um admirador de arte. É possível tentar fazer de sua coleção pessoal fonte de retornos financeiros e de diversificação de riscos. Exemplos, como os quadros de Beatriz Milhazes, cujos preços variavam entre US$ 150 mil a US$ 300 mil na mostra que realizou em São Paulo em dezembro de 2007 e que acabou de ter a sua tela “O Mágico” negociada por US 1 milhão em 15 de Maio último, no Sotheby's de Nova York, tornando-se a obra mais cara já vendida de um artista brasileiro vivo; ou do colecionador Raul Forbes, cuja motivação inicial para compra de arte nunca foi a lógica do investimento (palavras do próprio), que em 1984 comprou o Abaporu de Tarsila do Amaral por US$250 mil, vendeu em 1995 por US$1,25 milhões e que segundo o próprio Forbes vale várias vezes mais hoje. Mas como paixão e bons investimentos raramente andam juntos, como em todo mercado, a procura de profissionais de confiança para consultoria, tempo de estudo sobre o assunto e cautela é sempre aconselhável. Para os amantes da arte, olhar com um carinho para esse assunto, pode ser a junção do útil com o agradável.

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