Cartas

Carta 13

abril | 2010

1. Sociedade, Tecnologia e Economia na Década Passada

Em toda a história da humanidade a busca pela antecipação de eventos sempre provocou fascínio. A descoberta do “futuro”, por muitas vezes durante a existência humana, significou a sobrevivência da raça. Nossos ancestrais mais antigos, sem as ferramentas científicas que dispomos hoje, costumavam associar os fatos às vontades dos deuses. Com a evolução do conhecimento e a melhor compreensão dos fenômenos universais, passamos a entender que apesar de não possuirmos poderes de vidência, é possível, através de métodos científicos, atribuir probabilidades a eventos futuros e ou até mesmo antecipar fenômenos, como por exemplo, os acontecimentos metereológicos ou a trajetória de uma ação. Um dos exercícios mais interessantes é lançar um olhar sobre o passado em busca de tendências futuras. Tal expediente torna-se especialmente atrativo quando a janela de tempo observada é inovadora, assim como foi a década que acabamos de encerrar.

 

Os primeiros 10 anos do século XXI foram desafiadores. Em todos os campos da sociedade presenciamos acontecimentos e mudanças significativas que irão ditar os próximos passos da humanidade. Do dia 01 de Janeiro de 2000 ao dia 31 de Dezembro de 2009, vimos a economia mundial prosperar a níveis nunca antes alcançados e então ruir entre hipotecas de segunda linha. Observamos o despertar dos “BRICS” e outros emergentes, levando o cenário econômico mundial a uma perspectiva diferente daquela polarizada nos países desenvolvidos. A maior potência bélica do mundo foi atacada em seu próprio território. O inimigo era clandestino, invisível. A guerra mudou de cara. Não mais contra outra nação, o inimigo sem face, antes esporádico e agora recorrente, conhecemos como terrorismo. Fatos e eventos que pela sua importância nos induzem a uma reflexão sobre os anos passados em busca de respostas que auxiliem na construção do futuro. Desta forma, tentamos nesta carta, incentivar uma releitura dos anos 2000, passeando por alguns de seus eventos, tentando resumir neste curto espaço a relevância desta década para diferentes tópicos da sociedade.

 

Tecnologia

“Qualquer tecnologia suficientemente avançada parece mágica” (Arthur C Clarke). Poderíamos tranquilamente chamar a década passada de a década digital. O homem aperfeiçoou a digitalização de dados e toda informação se tornou acessível em tempo real. Ícones foram desenvolvidos. O Google se tornou assessor de assuntos diversos para a maioria das pessoas do mundo, o Ipod o tocador pessoal de música e o Black Berry a ferramenta de trabalho para qualquer hora. A banda larga e a tecnologia sem fio propiciaram a disseminação da informação para as mais diversas partes do planeta. A tecnologia ficou mais barata. Multiplicaram-se os números de celulares, computadores pessoais e conexão à internet. As redes sociais on line explodiram, assim como as câmeras digitais. Todos sabem o que todos estão fazendo, é cada vez mais difícil conseguir privacidade. Os arquivos são hoje compartilhados pela internet, difícil de se regular, um prato cheio para a pirataria e clandestinidade. É preciso se reinventar.

 

No meio científico o aquecimento global dominou os debates neste século. A preocupação mundial relativa a emissão de gases e o conseqüente aumento da temperatura do planeta dominaram os noticiários. A pressão sobre os cuidados ambientais aumentou significativamente sobre países e empresas.  A economia verde e os cuidados com a Terra devem continuar na pauta das discussões nos próximos anos.

 

Outras inovações nos fizeram sonhar. O genoma humano foi mapeado, e inúmeros genes relacionados a doenças como o câncer e o diabetes foram identificados. A medicina caminha para uma grande revolução. Foi inaugurado na Suíça o maior acelerador de partículas do mundo, que promete ajudar a responder questões cruciais sobre a nossa existência. Átomos foram tele-transportados. Invenções que nos permitem crer que na próxima década o que hoje parece mágica se tornará tecnologia.

 

Sociedade

Nobert Elias, em sua obra mais importante, o processo civilizador, procura compreender através de uma viagem ao passado e o estudo dos costumes sociais, a formação do conceito de civilidade. Conclui em determinado momento, que as classes mais altas, com o intuito de afastarem-se das classes menos abastadas criam padrões de comportamento diferenciados. A primeira década do século XXI evidenciou uma transformação que começou a inverter determinados valores sociais. O acelerado crescimento econômico acompanhado da revolução tecnológica produziu enorme circulação do dinheiro. Fortunas trocaram de mãos. O mérito sobrepôs o status e novos ricos estiveram em evidência. Certos nomes se tornaram ícones deste novo conceito, Warren Buffet, Bill Gates, Steve Jobs entre inúmeros outros fundaram o clube de novos bilionários definindo novos valores sociais que parecem perdurar.

 

Por outro lado, a queda da taxa de natalidade, o envelhecimento da população das nações desenvolvidas e a péssima distribuição de renda nos países em desenvolvimento provocam um fluxo migratório em busca de melhores condições de vida. A questão é complexa. Se em um momento inicial o efeito é positivo com uma redução do déficit de mão de obra nos países acolhedores, no médio para o longo prazo os problemas são latentes. A desqualificação dos imigrantes produz um exército de desamparados que oneram o poder estatal local. A informalidade e o crime tornam-se a principal saída. No fim, os forasteiros se transformam em peso para o estado, para iniciativa privada e a sociedade em geral. A complexidade desta questão, em conjunto com outros fatores como as ações terroristas, nos conduzem a outra adaptação deste novo século. O medo levou os países a reforçarem suas fronteiras e aumentarem as exigências de entradas para visitantes. No século XXI o receio da imigração estrangeira foi incorporado aos pacotes de viagem.

 

Inúmeras inovações tecnológicas provocaram novos comportamentos sociais. Nesta década, com a democratização do acesso à banda larga, presenciamos a explosão das redes de contato, compartilhamento de arquivos e informações pela Internet. Facebook, Orkut, Youtube, Twitter, a informação passou a circular praticamente em tempo real. A telefonia celular alavancou a inclusão digital. No Brasil, país com 200 Milhões de habitantes, já existem mais de 150 Milhões de linhas habilitadas. As tecnologias convergiram e a internet chegou ao celular. As pessoas passaram a estar 24h conectadas. O trabalho migrou para as residências, assim como o lazer. Com um simples apertar de botão é possível comprar de tudo, de filmes aos artigos de supermercado, pode-se fazer tudo sem sair de casa.

 

As transformações foram muitas, impossível resumir todas neste espaço. Entretanto, vale ressaltar, que se mudanças nos padrões de comportamentos presentes na sociedade significam mudanças nos seus padrões de consumo, a década passada se encerrou repleta de desafios e oportunidades para todas as indústrias. Exatamente como a que se inicia.

 

Economia

As Duas Grandes Potencias e o Equilíbrio Instável Mundial

Com aproximadamente 195 Km de extensão o canal de Suez foi inaugurado em 1869 como uma opção estratégica para o fluxo de mercadorias entre o continente europeu e asiático. Antes da sua construção, as embarcações que quisessem realizar este trajeto tinham de contornar todo o continente africano através do Cabo da Boa Esperança. Inicialmente pertencente à França e o Egito, seus construtores, o canal teve seu controle negociado com a Inglaterra em virtude da dívida externa contraída pelos egípcios. Em 1888 com a assinatura da convenção de Constantinopla ficou decidido que nenhuma nação teria controle único sobre o canal, sendo permitido seu uso, por qualquer país, mesmo em períodos de guerra. Em 1952 um golpe de estado derrubou o governo do Rei Faruk. Com o apoio soviético, e dispostos a realizar reformas que incluíam a nacionalização do canal, os rebeldes passaram a ser vistos como uma ameaça pela tríplice formada por Inglaterra, França e Israel. A guerra foi declarada. Pára-quedistas ingleses tomaram o controle do Porto de Eliat. Com o ainda recente fim da segunda guerra mundial, e preocupados pela tensão existente nos tempos de guerra-fria, os Estados Unidos foram contrários ao movimento. Quando não atendidos por seus aliados, os americanos ameaçaram vender no mercado todo seu estoque de dívida britânica. Seria o colapso da Libra Esterlina. Diante de tal ameaça, algumas semanas depois, as tropas aliadas retornavam as suas casas.

 

Tal introdução, inspirada em parte do documentário I.O.USA e aparentemente fora de propósito, alerta o leitor para uma das grandes questões político- econômicas emergidas ao fim desta década: o tamanho da dívida federal americana, conseqüência de seguidos anos de crescimento econômico e afrouxamento fiscal. O cenário econômico mundial durante os primeiros 10 anos do século 21 foi de extremos. Na maior potência do mundo não foi diferente. Seguindo a política determinada pelo então presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, a economia dos Estados Unidos experimentava, afora pequenos percalços, seguidos ciclos de crescimento. O cenário de inflação controlada com juros baixos soava perfeito para a expansão do consumo e consequentemente da economia. A Internet surgia como um promissor ambiente de negócios. Investimentos foram canalizados para a grande rede e criou-se uma bolsa de negociação focada em empresas de tecnologia, a Nasdaq. Companhias “ponto com” valorizavam-se exageradamente, surgia ali a primeira bolha do século que viria a estourar logo em seguida. Nada, entretanto, que travasse a tendência de expansão econômica.

 

Ainda em 2001 novo revés. No dia 11 de Setembro, o território americano foi atacado por terroristas ligados a Osama Bin Laden. Como resposta, o Governo Bush declara guerra ao terrorismo invadindo logo em seguida, o Afeganistão e o Iraque. Inflacionados pelas despesas bélicas, os gastos fiscais disparam, assim como a dívida norte - americana. Nos mercados, apesar do susto, os anos seguem dourados. As taxas básicas de juros continuam baixas, o consumo crescente e o crédito farto. Assim nos Estados Unidos como na Europa. Adicionalmente, os emergentes, principalmente aqueles agora denominados BRICS, fazem seu dever de casa e impulsionam a economia. Uma nova classe de consumidores, ávida por consumo e dívidas surge nestes países. A euforia parece não ter fim. A demanda por produtos e novos investimentos dispara. Índices de bolsas de valores valorizam-se a taxas inimagináveis. Os preços das commodities, matérias primas que alimentam todo o crescimento, chegam na estratosfera. O barril de petróleo ultrapassa a casa dos USD 150,00.

 

Nos Estados Unidos, após seguidos anos de boom econômico e valorização de ativos, incluindo o setor imobiliário, uma questão começa a preocupar. O crescente consumo aditivado por taxas de juros muito baixas incentiva a cessão de crédito por parte das instituições financeiras. Sem uma regulação eficiente o nível de alavancagem explode em sentido inversamente proporcional à qualidade do crédito. Um colapso era inevitável. O pânico domina os mercados mundiais. O crédito cessa. A demanda por consumo diminui, os preços dos imóveis despencam. Com uma dívida significativamente superior ao seu ativo, o consumidor médio americano se vê incapaz de honrar suas obrigações. Instituições financeiras se vêem tomadas de direitos creditícios sem valor. Inicia- se uma quebradeira generalizada no setor financeiro mundial. Em outro Setembro negro, mais precisamente domingo 15 de Setembro de 2008, anuncia-se a quebra de um dos maiores bancos de investimento americano, o Lehman Brothers no que foi a maior falência da história. Inicia-se o ápice da crise e a destruição de valores. Fortunas destruídas. Os governos agiram rápido injetando liquidez na economia e socorrendo empresas em dificuldade. Ainda assim os danos foram avassaladores. Milhões de empregos perdidos. Sem saída em meio a tantos resgates, vem à tona o maior esquema Ponzi da história. Bernard Madoff queimou, em um esquema fraudulento de pirâmide, aproximados 50 bilhões de dólares. O governo americano anunciou um pacote de socorro a economia no valor de 700 bilhões de dólares, os níveis da dívida e principalmente do déficit americano que já eram preocupantes cresceram ainda mais.Em 2009, último ano da década pudemos observar sinais de recuperação econômica. Entretanto ainda é cedo para avaliar o tamanho da economia para os próximos anos, de certo, apenas que será diferente da que passou.

 

No outro lado do planeta, o Século 21 revelou um fenômeno. Com a consolidação da abertura econômica liderada por Deng Xioping, a China floresceu. Baseado em um modelo exportador e com forte presença estatal na economia, o gigante asiático cresceu na última década a uma média impressionante de 9,7% ao ano. O mundo conheceu seu potencial. Atraídos pelo que o país poderia oferecer, como por exemplo, uma fonte numerosa e barata de mão de obra, inúmeras fábricas instalaram lá suas linhas de produção. Com a artificialidade de sua moeda e surfando na onda do crescimento global os chineses se tornaram os maiores exportadores do mundo.

 

Na esfera pública não foi diferente. O PCC, partido comunista chinês, aproveitou as divisas geradas pelo rápido crescimento reinvestindo-as diretamente em infra-estrutura para o país e população. O país virou um canteiro de obras e o nível de consumo do chinês mudou de patamar, assim como a economia mundial. O preço das commodities explodiram, a demanda chinesa por insumos de produção era vigorosa, e no rastro de seu desenvolvimento trouxe todos os países exportadores de matéria prima. O caso chinês é controverso. Muitos questionam a sustentabilidade do seu desenvolvimento. Alguns dizem que tem prazo de validade. O fato é que no encerrar da década, quando a economia ruiu, foi no país vermelho que o mundo depositou todas as fichas de sua recuperação.

 

Difícil traçar um paralelo entre o evento de 1952 citado na introdução e o momento atual. Impossível mensurar qual o grau de influência político-econômica de um grande credor sobre os Estados Unidos nos dias de hoje. Antigamente, nos tempos de soberania inglesa, o ativo base das reservas dos países atrelado as suas moedas era o ouro, nos dias de hoje é o Dólar. É difícil também afirmar que a moeda americana será substituída como principal ativo mundial, mesmo que por uma cesta de moedas. O grande ponto de reflexão reside no fato de que toda irresponsabilidade é punida. E os americanos não tem demonstrado a responsabilidade esperada com o tamanho da sua dívida. Impossível prever com exatidão as variações político-econômicas da próxima década, o fato é que, hoje, o maior credor americano é a nova China, culturalmente diferente e historicamente posicionada do lado oposto ao Ocidental.

 

Finalmente, com relação ao continente Europeu a década passada presenciou o desenvolvimento da Zona Comum do Euro iniciada em 1999. Apesar de inovadora, a idéia de unir diferentes países em uma única zona monetária exige forte coordenação das políticas econômicas. E a região reuniu países demasiadamente heterogêneos. Com diferentes níveis de dívidas, crescimento, e metas inflacionárias, a política monetária demandada por uma país, não é necessariamente adequada para outro. Começaram a surgir inúmeras distorções regionais. O tratado de Maastrich, que estabelecia como diretriz um déficit fiscal máximo de 3% do PIB, de fato, nunca foi respeitado por vários países membros.

 

Assim, entramos nesta nova década com países europeus elevadamente endividados e com a Alemanha sendo a dona da Europa hoje. Tornou-se fácil encontrar entre países membros do Euro elevados déficits fiscais e alto estoque de dívida pública em proporcionalidade ao PIB gerado por estas nações. O caso mais dramático é o da Grécia. Sua relação dívida PIB encontra-se próxima de 120%. O déficit fiscal do país é hoje de 12,7% dos recursos gerados. Não existe outra solução para os gregos senão rolar significativa parte da sua dívida nos próximos meses. O país se comprometeu a fazer um forte ajuste. Entretanto, não é certo que difunda no mercado a credibilidade necessária para tanto. Caso não consiga, vai ter que recorrer à ajuda da Alemanha. O contribuinte alemão, ainda machucado pela crise, não simpatiza com a idéia de ajudar os gregos. Na Grécia, há também entre a população enorme restrição a ajuda externa, receosos principalmente pelas inúmeras restrições econômicas que lhe serão impostas. A questão é preocupante. Principalmente em um momento em que as economias, lenta e gradualmente se recuperam da crise de 2008. A Comissão Européia demonstra enorme preocupação com o efeito de contágio em outros países ou bancos. O fato é que a questão envolve um enorme perigo moral. Existem outros países europeus em dificuldades. Dependendo do grau de amargura do remédio dado a Grécia, a Alemanha pode se ver obrigada a socorrer outros filhos.

 

A década nasce complexa. A crise de 2008 exigirá de países menos competentes que adaptem o tamanho de suas economias aos novos níveis de crédito e alavancagem. O “bolo” diminuiu. O comando da festa, desde a segunda-guerra exclusivamente na mão dos Americanos, parece cada vez mais se descentralizar também em direção a China e a Alemanha. Resta saber quem serão os convidados de destaque.

 

Brasil

Para uma democracia jovem como a brasileira é ponto extremamente positivo comemorar o continuísmo de uma política econômica baseada no tripé Disciplina Fiscal, Câmbio Flutuante e Metas de Inflação. Nas duas últimas décadas observamos o amadurecimento da economia do Brasil e a confirmação da estabilidade política, artigos de rara exceção no continente que o país está inserido. Com o comando do país bipolarizado entre dois partidos, o PT e o PSDB, a sucessão do poder ocorreu de forma bastante tranqüila e o país pode também aproveitar o boom econômico mundial, principalmente a explosão das commodities, responsáveis pela formação de 40% do PIB do país.

 

Com as reservas estabilizadas, o nível da dívida controlado e instituições fortes o Brasil se tornou extremamente atrativo para novos investimentos. O Índice Bovespa se valorizou 301,30% na última década. O país recebeu o grau de investimento e se tornou a bola da vez. Em um fenômeno parecido ao ocorrido no restante do mundo o dinheiro chegou às classes menos favorecidas e o brasileiro começou

 

a experimentar o crédito. Uma grande massa de novos consumidores surgiu impulsionando com força a economia. A profissionalização chegou às empresas e foram incontáveis os números de ofertas públicas de ações na bolsa de valores. O estrangeiro comprou o país, que passou a caminhar em passos fortes rumos a melhores níveis de desenvolvimento. Ganhamos a Copa e as Olimpíadas e descobrimos o pré sal. Existem ainda inúmeras reformas estruturais por fazer, mas o magnetismo brasileiro para novos investimentos parece ser de longa duração.

 

Nesta década que se inicia, o grande desafio será pela continuidade desta estabilidade. Os exemplos de governos populistas e desrespeito às instituições pipocam pela América Latina. Tal expediente, extremamente perigoso, torna-se especialmente possível em regiões de intensa desigualdade social, como ainda é o Brasil. Nos últimos anos, apesar da visível melhora em todos os indicadores sócio- econômicos o país demonstrou enorme vocação para os gastos públicos. A forte atratividade de investimentos e o conseqüente aumento da arrecadação governamental possibilitou que o Estado aumentasse seu tamanho sobre a economia. Os Bancos Públicos alavancaram o acesso ao crédito e o boom econômico. Apesar dos efeitos positivos no curto prazo, o aparelhamento estatal na economia está longe de ser eficiente. O aumento da burocracia, inerente à presença governamental, torna o ambiente propício para a corrupção e insegurança jurídica, dois fatores repelentes de novos investimentos. Além disso, o Brasil ainda é extremamente carente de infra-estrutura básica, desta forma o governo deveria direcionar seus investimentos para a melhora da estrutura nacional em diferentes setores como educação, transportes, segurança entre outros, trazendo sustentabilidade para o crescimento econômico garantindo que ele perdure no longo prazo. Entretanto, nos últimos anos, maqueado principalmente pelo bom momento da economia global e a popularidade do atual presidente, o governo pareceu se esquecer dos limites de seu orçamento, inflando os gastos públicos e a economia através do aumento da participação estatal em empresas, da contratação de servidores, crescimento de políticas assistencialistas e obras públicas. Com um discurso nacionalista aditivado pelo bom momento, o governo passa a impressão de que sua capacidade de investimento é muito maior do que a presente em suas contas, política sustentada apenas por elevado endividamento e grande crescimento econômico, o que coloca em questionamento a estabilidade econômica duramente alcançada nos últimos 20 anos.

 

A década começa com ano eleitoral e independente do vencedor, é importante o país contar com serenidade e fundamentalismo, especialmente na economia, garantindo principalmente a continuidade da política econômica baseada em disciplina fiscal, câmbio flutuante e metas inflacionárias.  Adicionalmente espera-se a realização das reformas necessárias além de investimentos em infra- estrutura e redução da burocracia, para só assim, enxergarmos na próxima década, o país caminhando de alguma forma para melhores índices econômicos e principalmente de desenvolvimento humano para toda a população.

 

2. Dinâmica da Dívida Pública, Risco Soberano e Inflação

Passados algo como 18 meses após a quebra da Lehman Brothers, o mundo continua digerindo os efeitos da grande crise que se seguiu. Muitos dos acontecimentos recentes no mundo econômico e financeiro não possuem precedentes. No entanto, entender seus impactos será fundamental para navegar com maior segurança em matéria de investimentos para os próximos anos. Neste espaço da nossa carta, vamos escrever sobre um dos mais importantes legados da crise: o elevado nível da dívida pública em várias economias importantes. Os elevados déficits fiscais recentes advém da perda de arrecadação devido à forte queda na atividade econômica e das políticas fiscais contra-cíclicas no combate a grande crise. Estes altos déficits adicionam dívida em economias cujo endividamento já estava bastante elevado. Para piorar a situação, em muitos destes países existe uma questão estrutural ligada a necessidade de financiamento previdenciário a partir do envelhecimento populacional. Para adiantar a conclusão, o principal impacto é o retorno do risco soberano nos países desenvolvidos e uma diminuição da diferença com relação ao nível de risco de países emergentes ou entidades privadas. Não podemos deixar de mencionar o aumento do risco de inflação no futuro já que existe a tentação dos governos de diminuir o valor real da dívida através da inflação.

 

Os economistas Stephen Cecchetti, M S Mohanty e Fabrizio Zampolli escreveram sobre a necessidade de ajuste fiscal em importantes economias. A tabela abaixo mostra, segundo os autores, o esforço fiscal, medido pelo superávit primário como proporção do PIB, necessário para trazer a relação Dívida/PIB de volta para os níveis de 2007, ou seja, pré-crise, durante intervalo de tempo de 5, 10 e 20 anos.

O que a tabela mostra é que as principais economias mundiais precisarão apresentar superávits primários relativamente altos durantes os próximos anos para que possam garantir a sustentabilidade de suas respectivas dívidas. É claro que a tabela acima, ao exigir a volta da dívida/PIB para o nível de 2007, e na primeira coluna, que isto ocorra em 5 anos, traz números de enorme esforço fiscal que julgamos impraticáveis. Mas o argumento de que é necessária uma consolidação fiscal é bastante robusto. As principais variáveis que afetam a dinâmica da dívida é a taxa de juros implícita nesta dívida e a taxa de crescimento do PIB. Quanto maior o hiato entre estas duas, maior tem que ser o esforço fiscal para estabilizar a relação dívida/PIB.

 

No longo-prazo a questão é crítica. Em outro artigo recente Keneth Rogoff e Carmen Reinhart analisaram dados de 44 países durante duzentos anos procurando estabelecer empíricamente a relação entre dívida, crescimento econômico e inflação. Os autores sustentam que quando a relação dívida/PIB atinge 90% a mediana do crescimento econômico passa a ser 1% mais baixa. Os autores não encontraram uma ligação entre dívida pública e inflação em países desenvolvidos, diferentemente do caso de países emergentes, onde a presença de dívida externa é um fator ainda mais importante. A ligação entre dívida e crescimento econômico advém do fato de que uma elevada dívida requer aumento de impostos para atingir a sustentabilidade. Maior taxação traz distorções que diminuem o produto potencial.

 

Com relação a inflação, o problema é que pode haver maior pressão política e econômica sobre as autoridades monetárias para que diminuam o custo real da dívida com inflação não-antecipada. O ganho social em perseguir esta política é maior quanto maior o estoque da dívida, quanto mais longa é seu vencimento e quanto maior a proporção que é mantida por estrangeiros. Este é um risco que deve ser monitorado constantemente. Até agora existe pouca evidência que as perspectivas fiscais estejam afetando as expectativas de inflação. As medidas de inflação esperadas, tanto baseadas no mercado de renda-fixa, quanto em pesquisas sobre os agentes, estão ancoradas nos seus níveis considerados “normais”.

 

É fato que os governos tendem a procrastinar ajustes devido ao elevado custo político que eles trazem, a exemplo de greves e protestos que recentemente tomaram conta das ruas na Grécia. O ajuste somente ocorre, de alguma forma, quando chega-se em um limite imposto pela sociedade ou pelos mercados, que passam a exigir premio de risco maior para carregar ativos do país em questão. O limite já chegou na referida Grécia e nos parece ter chegado nos demais PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha).

 

É preciso vontade política e consenso entre a população de que um período de ajuste se faz necessário. Um exemplo deste aspecto foram as reformas impostas por Margareth Tatcher na Inglaterra na década de 80. A elevada inflação e ineficiência do setor público permitiram um aparecimento de um clima político de que as reformas se faziam necessárias. As mudanças foram levadas adiante, com algum sofrimento, principalmente dos grupos mais afetados, como os sindicatos, mas o conjunto de reformas lançou as bases para um crescimento econômico robusto, baseado no livre mercado em que a Inglaterra cresceu mais do que seus pares no continente europeu. Podemos estar assistindo nos próximos anos a um “turning point”. O surgimento de um consenso de que a consolidação fiscal se faz necessária em várias partes do mundo. A Irlanda já iniciou o processo e, pelo menos aos olhos do mercado financeiro, está obtendo sucesso, conseguindo atingir a confiabilidade para realizar as reformas. Alguns países terão sucesso, outros não. Do ponto de vista dos investimentos, a primeira decisão a se tomar daqui para frente é escolher aqueles em que a probabilidade de sucesso é maior.

 

Se sempre foi importante o estudo macroeconômico das condições dos diversos países para conduzir nosso processo de investimento, no mundo pós-crise, este tipo de análise é fundamental. Portanto, no tocante aos investimentos o foco deve estar em países com crescimento potencial mais alto onde o arranjo político institucional é mais robusto e onde existe vontade política para realizar mudanças. Dentre os países desenvolvidos, os EUA parecem estar bem posicionados já que é uma economia dominante, altamente inovadora e produtiva, com perspectivas demográficas melhores do que na Europa ou Japão, com um Banco Central que possui alta credibilidade no combate inflacionário. Mas mesmo assim, devemos ficar muito atentos as mudanças de postura fiscal ou monetária.

 

De qualquer maneira, a elevada Dívida Pública é um problema global cuja conseqüência é trazer o risco soberano para o centro das discussões. Com isso, acreditamos que a separação estrita entre risco soberano e risco privado, sendo que o primeiro era sempre menor que o segundo, não existe mais necessariamente. A “área cinzenta” que existe entre o risco de crédito soberano e privado é cada vez maior. Os investidores precisarão, mais do que nunca, separar o joio do trigo.

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